sexta-feira, 2 de setembro de 2011

ACASO


Pensar o acaso a partir de um referencial psicanalítico implica levantar certos pontos que questionam imediatamente uma lógica atributiva/causal do inconsciente e uma lógica outra, para-consistente talvez, que nortearia o que chamamos de acaso. Perguntamo-nos, por exemplo: até que ponto decidimos coisas de nossas vidas, fazemos escolhas e operamos sobre o mundo? Ou, de fato, somos levados por algo de outra ordem - o acaso, talvez - que decide por nós, que põe e dispõe as inúmeras peças de nossos tabuleiros ao seu bel prazer?

O homem sempre se debateu com a questão dos limites de seu poder e sua vontade sobre um desígnio Outro, estrangeiro, ou mesmo um não-desígnio. Oscilando entre visões que estipulam poderes de atuação que beiram o divino e outras que situam a consciência e a razão como os parâmetros das atitudes humanas, ele tem tentado conhecer o quinhão que lhe cabe decidir em seu parco destino.

O fascínio pela psicanálise pode nos levar a ver o inconsciente como a diretriz maior de praticamente todos os atos e falas humanos. Daí podermos pensar que, para a psicanálise, "o acaso não existe". Como se houvesse um desejo inconsciente norteador que pudesse explicar tudo - afinal, não é verdade que "Freud explica"?

Uma outra forma de dizer essa pequena frase é assim: o inconsciente explica. O inconsciente nos leva a agir desta ou daquela maneira, mas sempre na direção do objeto que no momento embasa e serve de isca para o desejo sempre em movimento do sujeito. Desejo aqui como um conceito psicanalítico central no desenrolar da pulsão de vida e daquilo que esta carrega em si de criação.

Assim, a partir de uma certa posição epistemológica, podemos dizer, ou melhor, interpretar, as produções humanas sempre na via do desejo inconsciente e não do "mero" acaso. Compactuar com o acaso, nesse sentido, instauraria a posição alienante básica de um sujeito sem desejo. Assim, por exemplo, tal sujeito não adota tal estilo de falar ou se vestir "por acaso": na verdade, segue normas precisas e bem delineadas - e na maioria das vezes sem mesmo se dar conta disso - ditadas por seus padrões inconscientes de identificação e idealização. Da mesma forma, ele não se apaixona por determinada pessoa "sem querer": o objeto da paixão, assim como o de qualquer pulsão, é cuidadosa e ardilosamente situado pelo sujeito (inconscientemente, eis o paradoxo do qual jamais escaparemos) nas tramas de sua história, em correspondência com a construção de seu desejo, em suas várias caras e personagens.

Enfim, desse ponto de vista, poderíamos dizer que para a psicanálise não há acaso. O ser é levado pelo seu desejo inconsciente ao sabor das marés, e de forma mais ou menos alienada, de acordo com o grau de maturidade ou de "análise" que ele tenha atravessado na vida.

Porém, é possível problematizarmos o próprio conceito de acaso e introduzirmos uma questão: afinal, que acaso é esse? Quais seus limites? Quais seus estatutos?

Aquilo que se denomina acaso está imerso numa rede semântica muito ampla. Proponho, então, duas "ordens" para o acaso: uma in-sujeito, outra ex-sujeito. A primeira refere-se ao ser e o coloca como ponto de partida em suas enunciações - como ao se falar do inconsciente de determinada pessoa ou a perspectiva subjetiva de se lidar com os dados a priori de uma existência. A segunda ordem situa o acaso em sua perspectiva mais genérica: não mais sob o olhar do sujeito, mas do grande objeto chamado universo, com suas infinitas redes de ações e reações, possibilidades e atualidades, internet aumentada. Tal acaso, efetivamente, não é controlado pelo sujeito ou seu desejo inconsciente, não, ele o transcende e situa-se na aura do real das coisas. Este segundo, o acaso digamos universal, pode ser chamado o "grande mal", e o primeiro, aquele com o qual cada um de nós se depara no cotidiano, o "pequeno mal".

Dessa forma, a partir do grande acaso, isto é, de todas as possibilidades de formas de existência que se colocam para um sujeito (e que o "fazem" ter nascido em um país x, falar uma língua y, e ter sido gerado e formado em uma família z), ele opera suas escolhas, toma atitudes e transforma a realidade em seu alcance (alcance variável de sujeito a sujeito, com sua segurança e capacidade de alterar o status quo), manipulando os dados desse "pequeno acaso" que nada mais é que produto e objeto final do desejo inconsciente que busca se fazer atuante.

Daí o subtítulo deste breve delirar ontológico: se o sujeito se deixa esmagar pelo peso do grande acaso, entrega as linhas de seu percurso ao que ele nomeia Deus, Estado ou simplesmente Acaso, numa posição de certa forma alienada e alienante de suas opções mais verdadeiramente desejantes. O que, nesse caso, equivaleria a se deixar colocar na estrada e ser levado ao sabor do vento ou das decisões alheias.

E a psicanálise, justamente, nos desvela a possibilidade de, a partir da aceitação dos limites do grande acaso com os quais lidamos constantemente, se operar formas possíveis de escolha e atuação sobre seu destino, sabendo ‘ler’ seu inconsciente e assim podendo bancar o desejo que aí perpassa.

Afinal, o homem não é tão impotente assim frente às peripécias do acaso, um barco sem rumo e sem vela no oceano dos aconteceres da existência, nem tão superpotente que consiga manipular todos os fatos e dados da vida a partir de seu desejar ou poder. Sempre no eterno equilíbrio, assim se mostra o sutil papel desse sujeito, que deve se deparar com as limitações de sua vontade, ao mesmo tempo que não pode eximir-se da responsabilidade de suas escolhas, que, se intensas e assumidas, espelham-se a partir das mais tortuosas vias do desejo e do inconsciente

Acaso

O tema é muito instigante num bate-papo: acaso, destino, fatalidade... Neste contexto, por exemplo, há os que acreditam que nascemos com o destino totalmente já traçado. Para outros, não existe destino, e há os que vêem com ressalvas, ou seja, existe só para determinadas circunstâncias. Particularmente, defendo a hipótese de que certos eventos já vêm escritos no nosso livro de vida, para serem vivenciados em cada jornada evolutiva. Isso, porém, não elimina o livre-arbítrio, que nos oferece o compromisso de escolha em alguns aspectos espirituais. Esclareço: é uma opção individual melhorarmos ou persistirmos num erro. Podemos burilar ou não o nosso ser, a curto prazo, ou deixar para depois, e assim sucessivamente.

Mas, repito, "o acaso não existe". O que tem de acontecer, acontece e só atinge quem deve atingir. Para ilustrar o meu ponto de vista, recebo um e-mail que conta histórias de sobreviventes daquela inesquecível tragédia de 11 de setembro, em Nova York. E o que chama atenção são exatamente os pequenos detalhes. "Conta-se que o chefe de uma empresa chegou tarde, simplesmente, porque aquele dia era o primeiro em que seu filho foi ao jardim de infância.

Um outro estava vivo porque era seu dia de trazer rosquinhas. Uma mulher atrasou-se porque o seu despertador não funcionou. Outra porque ficou presa num congestionamento causado por um acidente. Um outro havia perdido o ônibus. Uma mulher teve que trocar de roupa porque derramou café em seu vestido. Um outro teve dificuldade em fazer pegar o motor do carro. Alguém teve que atender a uma ligação. O filho de outro demorou-se para sair da cama. Alguém não encontrava um táxi"

A pessoa, no e-mail, que falou sobre estes depoimentos, logo após escreveu: "Muitas outras histórias... pequenos detalhes... contratempos...talvez, algum dia, sejam escritas num livro. Aquele homem com quem eu conversava estava vivo porque tinha vestido sapatos novos que lhe causaram uma bolha no pé e teve que parar numa farmácia para comprar atadura.

Hoje, quando pego um congestionamento de trânsito, perco um elevador, atendo uma ligação no momento de uma saída...pequenas coisas que me aborreciam penso comigo...estou exatamente onde Deus quer que eu esteja neste momento. Que Deus continue a abençoar você com todos estes pequenos aborrecimentos que o faça lembrar de seus propósitos. Na próxima vez que parecer que 'se levantou com o pé esquerdo', seus filhos demorando para se vestirem, não lembrar onde deixou as chaves do carro, pegar todos os semáforos fechados no caminho do trabalho, não fique triste, não se irrite, não se sinta frustrado, louve a Deus e agradeça. Nem sempre compreendemos os desígnios divinos. Acredito que Ele queira sempre o melhor para nós, o difícil é ler suas entrelinhas...".

Moral da história e reforço de minha tese: O destino existe. Observem que só morreram os que estavam destinados para aquele dia e circunstâncias. Estes pequenos "imprevistos" acontece muito no nosso dia-a-dia, como forma de nos livrar de algum tipo de dissabor. Quantas pessoas não perderam o avião, a hora, e foi exatamente esta mínima ação que os fez sobreviver ? "Há males que vêm para o bem". Como tal, que consigamos ter paciência, serenidade, e entendê-los, fazendo uma leitura positiva, para podermos sempre poder contar estas histórias.