o paciente, ao comunicar seus estados psíquicos ou não ao analista, está transferindo tais emoções ao profissional. Este recebe e elabora o material, e devolve, sempre que for o caso, a interpretação do que ouviu. Quando, porém, a comunicação do paciente atinge o terapeuta em algo particular (por exemplo, uma situação parecida com a que o terapeuta já vivenciou), o analista pode, algumas várias vezes, “travar”, isto é, não conseguir elaborar o material levado pelo paciente. Soa, mais ou menos, como se ele se recusasse – emocionalmente – a receber a transferência, exercendo a chamada contratransferência. Os psicanalistas franceses Jean Laplanche e Jean Pontalis afirmam que a contratransferência, na Psicanálise freudiana, é compreendida como o “conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e, mais particularmente, à transferência deste”
É importante ressaltar que a figura do analista está, para muitas pessoas, numa fronteira entre bruxo e mágico. Por não conhecerem o corpo teórico da Psicanálise e suas várias vertentes, parece, a alguns, que o terapeuta tem a capacidade de “ler” pensamentos e traduzir em palavras todo o desconforto emocional pelo qual o paciente passa. Assim sendo, sua ascendência sobre o paciente é grande, o que fala tem relevo e é levado muito em consideração. Por isso, seus sentimentos precisam estar sob controle na dinâmica com o paciente, sob o risco de contaminar a relação. É fundamental que o terapeuta os observe em relação ao paciente, uma vez que tais sentimentos são subprodutos da interação que ocorre na sessão.
Afim de manter tais sentimentos sob controle vários psicanalistas adotaram posturas de defesa tanto emocionais como físicas. Durante muito tempo, o divã foi a barreira física estabelecida entre o analista e o paciente. Ficar ao lado do divã, com o paciente deitado, funcionava como uma defesa ativa para o analista, ainda que a “desculpa” fosse o conforto do paciente. Sem olhar nos olhos, apenas recebendo a comunicação deste, o terapeuta podia dar vazão a caras e bocas diante do material exarado. Com o desuso do divã, contudo, foi preciso que adotasse outras posturas físicas. Hoje, na maioria das vezes, de frente para o paciente, ele recebe toda a carga de sentimentos, emoções e frustrações e precisa lidar com o impacto que tais revelações proporcionam, sem lhe demonstrar nenhum sintoma que possa ser interpretado como juízo de valor ou reprovação. A frieza, para muitos analistas, é sua principal defesa.
Há que se perguntar, contudo, se tal frieza ainda tem lugar na clínica psicanalítica. Na década de 1950, os psicanalistas que tentavam tratar dependentes de álcool com essa postura fria e distante não conseguiam estabelecer o menor contato com o paciente. Com isso, o índice de insucesso era tremendo, o que só colaborava para tornar a dependência de álcool um “problema de caráter que acometia pessoas que não queriam se tratar”. Não se compreendia, na época, que alcoolistas severamente comprometidos necessitavam de uma abordagem mais próxima, de acolhimento. Prevalecia a idéia de que o psicanalista, do alto do seu pedestal, não podia se aproximar muito do paciente, uma vez que isso faria com que não compreendesse o quadro em sua totalidade. E isso ocorria não só com pacientes dependentes de álcool, mas com vários outros portadores de muitas outras psicopatologias. O distanciamento protegia o analista – não o paciente.
Por mais acaciano que seja é preciso que se diga que analista é um ser humano. E como tal, está sujeito às vicissitudes que assolam as pessoas. Ele fica magoado, triste, irritado e deprimido. Tem raiva (ódio mesmo), pode ter um dia excepcionalmente ruim e não conseguir atender seu paciente como de costume. É capaz de “dormir” na sessão (ficar disperso e não prestar atenção na fala do paciente), pode confundir sentimentos e situações e, por mais treinado que seja, está sujeito a erros de interpretação. Mas, ao contrário do que ocorre em outras profissões, o terapeuta pode aproveitar esses momentos de fragilidade emocional para aprimorar seus contatos com os pacientes. Isso porque, embora tais sentimentos possam não estar direcionados para algum analisando em especial, alguns deles têm a capacidade de evocar certas lembranças e emoções no terapeuta, com repercussões no mínimo interessantes na interação entre os dois e no conjunto do tratamento.
De modo bem simplista, diz-se que o paciente, ao comunicar seus estados psíquicos ou não ao analista, está transferindo tais emoções ao profissional. Este recebe e elabora o material, e devolve, sempre que for o caso, a interpretação do que ouviu. Quando, porém, a comunicação do paciente atinge o terapeuta em algo particular (por exemplo, uma situação parecida com a que o terapeuta já vivenciou), o analista pode, algumas várias vezes, “travar”, isto é, não conseguir elaborar o material levado pelo paciente. Soa, mais ou menos, como se ele se recusasse – emocionalmente – a receber a transferência, exercendo a chamada contratransferência. Os psicanalistas franceses Jean Laplanche e Jean Pontalis afirmam que a contratransferência, na Psicanálise freudiana, é compreendida como o “conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e, mais particularmente, à transferência deste”.
Durante muito tempo, o divã foi a barreira física estabelecida entre o analista e o paciente
Receber materiais que expressam, de uma forma ou de outra, passagens de sua vida, pode tornar o terapeuta um agente inconsciente dos recalques, repressões, sublimações do paciente. É importante ressaltar que a figura do analista está, para muitas pessoas, numa fronteira entre bruxo e mágico. Por não conhecerem o corpo teórico da Psicanálise e suas várias vertentes, parece, a alguns, que o terapeuta tem a capacidade de “ler” pensamentos e traduzir em palavras todo o desconforto emocional pelo qual o paciente passa. Assim sendo, sua ascendência sobre o paciente é grande, o que fala tem relevo e é levado muito em consideração. Por isso, seus sentimentos precisam estar sob controle na dinâmica com o paciente, sob o risco de contaminar a relação. É fundamental que o terapeuta os observe em relação ao paciente, uma vez que tais sentimentos são subprodutos da interação que ocorre na sessão.
O divã
Afim de manter tais sentimentos sob controle vários psicanalistas adotaram posturas de defesa tanto emocionais como físicas. Durante muito tempo, o divã foi a barreira física estabelecida entre o analista e o paciente. Ficar ao lado do divã, com o paciente deitado, funcionava como uma defesa ativa para o analista, ainda que a “desculpa” fosse o conforto do paciente. Sem olhar nos olhos, apenas recebendo a comunicação deste, o terapeuta podia dar vazão a caras e bocas diante do material exarado. Com o desuso do divã, contudo, foi preciso que adotasse outras posturas físicas. Hoje, na maioria das vezes, de frente para o paciente, ele recebe toda a carga de sentimentos, emoções e frustrações e precisa lidar com o impacto que tais revelações proporcionam, sem lhe demonstrar nenhum sintoma que possa ser interpretado como juízo de valor ou reprovação. A frieza, para muitos analistas, é sua principal defesa.
Há que se perguntar, contudo, se tal frieza ainda tem lugar na clínica psicanalítica. Na década de 1950, os psicanalistas que tentavam tratar dependentes de álcool com essa postura fria e distante não conseguiam estabelecer o menor contato com o paciente. Com isso, o índice de insucesso era tremendo, o que só colaborava para tornar a dependência de álcool um “problema de caráter que acometia pessoas que não queriam se tratar”. Não se compreendia, na época, que alcoolistas severamente comprometidos necessitavam de uma abordagem mais próxima, de acolhimento. Prevalecia a idéia de que o psicanalista, do alto do seu pedestal, não podia se aproximar muito do paciente, uma vez que isso faria com que não compreendesse o quadro em sua totalidade. E isso ocorria não só com pacientes dependentes de álcool, mas com vários outros portadores de muitas outras psicopatologias. O distanciamento protegia o analista – não o paciente
Embora essa rigidez ainda esteja presente em vários psicanalistas, o fato é que hoje, felizmente, muita coisa mudou. O analista, que deixou de ser um totem para si mesmo, desceu à terra e partilha a dor do seu paciente. Entende-se, claro, que esse “partilhar” vai até o limite do conforto que pode ser oferecido. O terapeuta que se envolve em demasia com a dor do paciente não vai conseguir ajudá-lo. Mas a distância fria e objetiva, que faz do analisando apenas um objeto de estudo, vem sendo abandonada em favor da leitura do sofrimento total experimentado por ele. O acolhimento não tira a objetividade da ação do analista. O receio deste, ao não acolher o paciente em sua totalidade (mas somente os sintomas apresentados) é justamente envolverse, tecendo, desse modo, uma rede de defesa em torno de si que não colabora com o tratamento. O terapeuta devidamente psicanalisado não tem receio de acolher o paciente.
Três fases
Citando Ferenczi, a psicanalista Lúcia Helena Rodrigues Navarro, em seu trabalho Da contratransferência em direção às questões relativas à regressão, diz que o autor “considerava os fenômenos contratransferenciais como pontos cegos ou aspectos não trabalhados na análise do analista, e absolutamente tudo o que se passasse do lado do analista, que pudesse ser tanto obstáculo quanto instrumento para a análise”. Ela cita as três fases da contratransferência: a lua-de-mel, o controle excessivo e a regulação (essas fases não são os nomes propostos por Ferenczi nem pela autora). Na lua-de-mel, o terapeuta se encanta e “adota” o paciente quando de suas queixas. No segundo, percebendo a contratransferência, ele regula, controla as emoções a fim de não se deixar “levar” (assume a distância protetora). No terceiro, com supervisão se for o caso, aprende a manejar a contratransferência.
Mas nem sempre esse caminho é percorrido. Mesmo dominando a contratransferência, alguns sentimentos são evocados no momento em que determinados pacientes atravessam a soleira do consultório e podem ir desde o ligeiro desconforto (já que o analista sabe o que virá), até a negligência na escuta, o “dormir” na sessão, sintomas marcantes do fastio que o paciente promove no terapeuta. Por mais bem trabalhada que sejam as questões envolvidas na contratransferência muitas vezes se torna impossível contorná-las. O paciente passa a ser, para o terapeuta, não alguém que precisa ser ajudado, mas alguém que o incomoda, que lhe promove “dor”, uma dor emocional – que nos psicossomáticos vai ao corpo – que se transforma, gradualmente, em ódio por ele “ter de agüentar” o paciente, por ter de ficar com ele por dever de ofício, por obrigação. Desse modo, é mais do que natural que o tratamento não atinja resultados satisfatórios.
É preciso entender esse “ódio”. A psicóloga Camila Salles Gonçalves, em seu trabalho Ódio e medo na contratransferência, diz: “Retomo aquelas páginas de Winnicott em que sua experiência de odiar uma criança é cruamente declarada. Ele não fala de um momento explosivo, vivência extrema que qualquer cidadão admite, desde que única e excepcional. Refere-se a um ódio inseparável da relação que estabeleceu com um menino de 9 anos, do qual cuidava, e que analisava, utilizando a interpretação, toda vez que deparava com a oportunidade de fazê-lo”. Winnicott, só para lembrar, foi um dos mais saudados, consagrados e prolíficos psicanalistas, que fundamentou seu corpo teórico na relação mãe–bebê. Esse relato citado pela psicóloga faz parte da comunicação que tem por título Ódio na contratransferência, e é um retrato muito cru do quanto o paciente pode desorganizar o analista durante as sessões.
Erotização
A raiva dirigida ao paciente se dá por uma série de motivos. Um deles guarda relação com a repetição temática. Se o cerne da comunicação é sempre o mesmo, ou com um roteiro que inescapavelmente cai no que já foi dito e repisado, e se isso fala às emoções do terapeuta, este pode tender a “não ouvir” o paciente. Ignorá-lo durante as sessões é uma defesa para não odiá-lo. Porque se verbalizar a raiva, o terapeuta provavelmente afrontará o paciente com todo o material de que dispõe e já elaborou. Todos sabem que o analista não diz o que o paciente deve fazer, mas o conduz até o ponto de compreensão. O analista com raiva do paciente fará um atalho que pode feri-lo (não será essa a intenção?). Outros motivos tais como semelhanças de situação, evocação de sentimentos eróticos (por parte de ambos), resistências internas superativadas (por parte de ambos também) avultam o ódio.
O ódio é, todavia, apenas um dos sentimentos que podem aflorar no analista diante do analisando. A própria condução do processo terapêutico se perde quando ocorre a erotização do binômio fala–escuta. Casos e mais casos de romance entre terapeuta e paciente têm sido relatados, e a história mostra que analistas consagrados não tiveram como escapar dessa armadilha. Jung, por exemplo, enamorou-se de sua paciente Sabine Spilrein. Obviamente, nos primórdios do movimento psicanalítico o envolvimento paciente–terapeuta não era visto como hoje – muito prejudicial ao tratamento, uma transposição e sintetização de todas as pulsões libidinais do paciente no terapeuta, e vice-versa, já que a correspondência não precisa nem se dar objetivamente, visto que o analista, tendo “permitido emocionalmente” que isso ocorresse, aceita o flerte e conjuga o verbo “erotizar” no setting terapêutico. A terapêutica, claro, se perdeu.
Mesmo que não exista a clara configuração da erotização do ambiente terapêutico, há, para muitos analistas, o desejo de estar sempre com determinado paciente. Este, ao contrário do que ocorre com o paciente odiado, quando chega ao consultório parece ao analista que tudo se ilumina. Há por parte do analista devoção aparentemente genuína pela fala do paciente, uma preocupação excessiva com seu bem-estar. O olhar do analista que não resolve essa interação na contratransferência está deslocado. Ele não consegue mais atuar em prol do paciente porque está preocupado consigo mesmo, com seus próprios sentimentos. Desse modo, contamina sua escuta, suas interpretações e devolutivas com seus desejos e devaneios e, emocionalmente – o que é muito ruim –, pode conduzir o paciente a algumas conclusões que favoreçam tais desejos. É urgente, neste caso, que o terapeuta leve a questão para terapia e supervisão ou, na falta destas, dê alta ao paciente.
Máquina
O que muitos se perguntam é se o analista deve falar de si para o paciente. Não dos seus sentimentos talvez, mas de si mesmo. De suas dificuldades, de sua história, dos seus caminhos. Durante muito tempo isso foi considerado um verdadeiro absurdo pelos psicanalistas mais puristas, justamente por causa da auréola de infalibilidade que possuíam. Analista, afinal, não tem história, não tem passado. É um ser acima de tudo e de todos, capaz de lidar bem demais com todos os seus recalques, com permissão de dividi-los com um par ou superior. Ferenczi propõe algo instigante, porém. Ele crê que o analista pode expressar abertamente ao paciente, em certas oportunidades, os sentimentos que experimenta em relação a este. A psicanalista Paula Heimann, autora do trabalho “A contratransferência”, considerado um marco na história e categorização desse conceito, não concorda
Para ela, a expressão da contratransferência sobrecarrega o paciente. Assim, ele não suportaria a carga psíquica devolvida pelo terapeuta. O analista, portanto, dentro dessa óptica, não deveria falar de si, nem usar de sua experiência pessoal para ilustrar passagens e auxiliar o analisando na compreensão de certos fenômenos que o acometem. Só que, com isso, perderia a oportunidade de lançar mão de quadros e passagens vívidas que podem auxiliar enormemente o paciente. É claro que isso precisa ser usado com parcimônia e bom senso. Há terapeutas que são pacientes dos seus pacientes, dependentes mesmo destes, e chegam ao ponto de, na sessão, ser os que mais falam, pouca margem deixando para o paciente se expressar. Os papéis se invertem como ocorre geralmente na dinâmica desorganizada. O que poderia ser uma troca interessante e proveitosa para ambos torna-se uma terapia para o terapeuta. O paciente já foi esquecido.
Eliana Borges Pereira Leite, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, diz que “o analisando pode se converter em agente de uma intrusão ou inoculação maciça de seus conteúdos na mente de quem o escuta”. Autores que comungam da tese de Eliana reforçam a necessidade premente de o analista estar constantemente se policiando quanto aos sentimentos experimentados em relação ao analisando. E isso ocorrerá só com supervisão de casos e principalmente análise. Com seus vícios e virtudes, fracassos e fortitudes, enfim, só sendo completamente humano é que o analista pode se propor tratar um ser humano. Colocar-se como alguém que não adoece, não tem problema, não esmorece mais afasta do que aproxima o paciente, porque este, tão acostumado a lidar com máquinas, não gostará de ter mais uma a sua frente, ainda que vestido de gente.
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